Contos

Caderno de recordação
Stella Maris Rezende
- Sou pobre de marré-derci, bocó da roça, mas abro o caderno e começo a escrever tudo o que me vem à cabeça avoada e ao coração ensofrido.
- Pelos Santos Vasos de Begônia, minha escrita não tem descanso enquanto não desvela cada pormenor que compõe este rol. Por maior que seja a vontade de apenas deixar a vida correr, prefiro recompor a vida.
- É de ver que uma casa não se conforma em ser unicamente uma casa, é também um entremeado de dores e alegrias.
- Um rol de males. Um rol de bens.
- Firmo os passos diante da casa da Polidora e vó Judite. Não posso mais viver sem a casa da Polidora e vó Judite.
- Ela é verde-cré, janelas e portas azuis. O muro caiado de branco, portãozinho cinza-escuro. Fica na Rua Morada Nova, número 25, o Rio Indaiá pouco mais adiante.
- O primeiro dono se chamava Agenor, o bisavô da Polidora, que deixou a casa para o filho João, João esse que deixou a casa para a viúva Judite, Judite essa que é a mãe do Antônio, Antônio aquele, o pai da Polidora. A mãe se chamava Célia.
- Agora a casa é da Polidora e vó Judite.
- Não mais que uma pequena riqueza verdejosa, onde se sobressaem, para quem vê de longe, muro branco e portãozinho cinza-escuro.
- Há pouco tempo, ô ingresia de vicissitude, perdeu os pais a Polidora, de modo tragediante. Estavam atravessando o rio e veio uma chuva de enchente janeireira.
- Quando Polidora recebeu a notícia, deixou a roupa de molho no sabão-preto. Quer dizer, esqueceu a roupa de molho no sabão-preto.
- A roupa ficou de molho mais de semana.
- Sabão-preto clareia bem qualquer roupa. Até a blusa vermelhinha clareou demais, virou uma blusa fininha puída rosa.
- Quando uma vizinha lembrou de olhar e enxaguar a roupa na bacia, disse assim para uma outra vizinha: a gente perde a cabeça.
- Logo que se entra, vê-se o pé de jabuticaba à direita. À esquerda, o pé de romã. Entre eles os pés de rosa. Tem rosa amarela, tem rosa branca, tem rosa vermelha, tem rosa cor-de-rosa.
- No mais, tufos e tufos de antúrio, léia-rubra, samambaia-do-campo.
- E olha um caminho de cimento vermelhão.
- E os quatro degraus que levam ao alpendre.
- Alpendre de ladrilho marrom e amarelinho-ouro, onde duas cadeiras de vime rodeiam mesinha de ferro-batido.
- Vale a pena botar reparo no forrinho de crochê da mesinha. Já muito encardido, mas ainda apresenta o crochê mavioso, obra de um primor tamanho de que só a vó da Polidora dá conta, mais ninguém.
- A vó da Polidora escapou do acontecimento fatídico, por motivo de cismar de não ir ao casamento da filha da comadre Natércia.
- Preferiu morgar dentro do quarto, e essa vocação para a preguiça vespertina salvou-a de atravessar o rio e ser arrastada pela chuva de enchente janeireira.
- A Polidora estava na escola. Já a Célia e o Antônio fizeram questã de comer o bolo da festa de casamento. Eles eram doidos com bolo de festa de casamento. O que mais queriam era o bolo, não vou inventar que apreciavam assistir a casamentos, só pensavam no bolo da festa, verdade seja escrita. Para isso, teriam que atravessar o rio, outro tresmodo não havia.
- Mas uma chuva de enchente janeireira não vem para dar as boas vindas e garantir a alegria das pessoas em travessia de rio. Principalmente nesses ribeirinhos que caminham para o grande São Francisco.
- Gostam de bolo de festa de casamento? Atravessem o rio. E depois não reclamem.
- Uma chuva de enchente janeireira vem é para levar alguns convidados para uma outra festa mais estranha, mais fastuosa, mais desconhecida, embora já marcada com bastante antecedência, ara mas tá. Come bacalhau, bebe água.
- Quando se entra na sala, convém deter os passos e respirar com os olhos fechados o cheiro do café com pamonha que a vó da Polidora prepara lá dentro na cozinha. Depois do cheiro do café com pamonha, costuma ser providencial o espelho do console. Nele qualquer um carece de ver se o cabelo está penteadinho e se no rosto não tem respingo de dentifrício. Nele eu me olho, me desconheço, já sei que sou outra menina, antes de passar ao restante da casa.
- Fico pensando na Polidora e na vó Judite.
- Será que herdaram pelo menos uma caixinha de jóias?
- É mais certo que sejam tão pobres de marré-derci quanto eu, porém, muito mais ricas de lembranças.